Summary: | A medicina clínica apresentou a partir dos anos 1960 uma certa inflexão em seus mecanismos internos de produzir conhecimento, assim como em sua forma de aplicar esses conhecimentos na prática. A principal diferença em relação ao passado foi que, a partir dessa época, os problemas de natureza clínica, como diagnóstico diferencial, terapêutica e estimativa de prognóstico, passaram a ser processados predominantemente por instrumentos de análise padronizados e, principalmente, submetidos ao escrutínio de uma razão empírico-matemática. A entidade paciente deixou de ser um ente emissor de sintomas e sinais que são processados por um médico, para ser uma nova entidade em que esses signos, previamente estabelecidos e validados pelos estudos clínicos e pela razão matemática, são encaixados pelos médicos nas manifestações dos pacientes. Na mesma época em que esse processo ocorreu o mundo ocidental vivia um período de crise que se caracterizava por um baixo crescimento econômico e por um questionamento por parte da sociedade dos princípios normativos, tanto éticos quanto morais, que regiam sua forma de viver. Nos Estados Unidos, a partir de 1962 passou a ser uma exigência legal que toda droga nova, antes de ser comercializada, deveria provar, através de testes científicos, que ela tinha eficácia terapêutica, que de fato funcionava na patologia que se propunha tratar. A metodologia para promover esse tipo de demonstração foi construída a partir dessa exigência. As regras de prova científica de eficácia foram construídas a partir dessa demanda legal, e são chamadas genericamente de Epidemiologia Clínica. Vários agentes participaram ativamente do processo de definição das regras do método científico que foram então, a partir dessa data, implementadas e sedimentadas. Destacam-se nesse debate, a comunidade acadêmica, a sociedade civil, os economistas, os advogados e juizes, os agentes do governo, e, finalmente, a indústria farmacêutica. Essa última assumiu uma posição de destaque, secretariando, e, de certa forma impondo uma agenda de discussão. O motivo por detrás dessa atitude foi uma profunda crise de legitimidade das regras de operação do negócio farmacêutico em dois de seus principais componentes: os desenvolvimentos tecnológicos, responsáveis pelas inovações na área terapêutica, e, a garantia de um mercado historicamente monopolístico, legitimada pela instituição secular da lei de patentes. Ambos esses institutos passaram, nas décadas de 1960 e 1970, por um conturbado processo de rediscussão de seus fundamentos. Defende-se que essa função de secretariar a discussão por parte da indústria farmacêutica teve um papel de destaque na construção das regras de cientificidade que passaram, desde então, a regular o ato médico. A implementação, aceitação e sedimentação como princípio normativo de prova de verdade dessa metodologia científica, sobretudo na comunidade médica, ocorreu de uma forma muito particular. Discute-se nesse trabalho a história dessa implementação sob duas perspectivas: a história oficial conforme descrita pelo Departamento de História do Food and Drug Administration (FDA, Agência Federal Norte-americana), e, alternativamente, através de uma análise dos discursos proferidos por personagens que direta e efetivamente participaram dessa discussão. Médicos, farmacologistas, advogados, legisladores, economistas, profissionais da indústria farmacêutica e agentes do governo emitiram e discutiram opiniões, e estas foram registradas e publicadas. Esse material compõe a matéria prima em cima da qual trabalha-se no sentido de compor uma história que acaba por ter alguns pontos diferenciais em relação à versão oficial. Em torno desses pontos procura-se produzir um discurso sobre a relação entre ciência, lei, economia, e, prática médica. A dimensão científica dessa história se mistura intensamente com outros aspectos igualmente importantes como: debates legislativos, interesses econômicos de segmentos privados, papel do Estado na regulação econômica, confiabilidade na neutralidade das publicações científicas, participação do mundo acadêmico no desenvolvimento tecnológico de um país, etc.. Defendese que a fusão desses discursos em um formato consensual construiu uma situação em que a referida dimensão técnico-científica passou a ter uma importância relativamente maior do que as outras como instrumento de legitimação da verdade em medicina na sociedade, e que esse fato teve algumas importantes conseqüências práticas, destacando-se: um processo progressivo de desumanização do atendimento médico e a produção de um sistema de barreiras que dificultam o exercício de uma critica eficiente e positiva por parte dos profissionais ligados à pratica médica. Por último, em torno do conceito de humanismo, abordado particularmente dentro da tradição filosófica ocidental, discute-se o quanto essa hipertrofia da dimensão técnica e suas conseqüências práticas, podem ser questionadas em seus fundamentos epistemológicos visando a reconstrução de uma prática médica mais humana e emancipadora.
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Since 1960 Clinical Medicine suffered a kind of inflection in its internal mechanisms of producing theoretical knowledge, as well as in the way that this knowledge is applied in practical life. The most important difference in relation to the past was that problems of clinical nature like, differential diagnosis, therapeutical decisions, and prognosis estimation, started to be predominantly processed by standardized analytical instruments, and most important, they were always previously submitted to an empirical-mathematical reasoning. Individual patients were no longer a being that reported signs and symptoms that were processed by a physician, they started to be a new entity in which these signs, previously established and validated by clinical studies have to be necessarily engrafted by the physicians in patients manifestations. At the same time that this process occurred, western world was living an important critical period, characterized by a very slow economic growth, and by a reevaluation of its ethical and moral values. After 1962, in the United States, it became obligatory to prove, through empirical scientific evidence that a new drug was effective, before marketing and sales authorization was issued to a company who wanted to launch the drug. The scientific method designed to prove efficacy of a drug was actually developed after this legal demand. This method is called generically Clinical Epidemiology. Several actors participated in the discussion of the rules of this method. Medical Schools, government representatives, pharmaceutical industry can be cited; the latter played a very special role, since it acted as a secretary of the whole process. The reason behind this was that, at those times, the two major pillars of the pharmaceutical business, innovation capacity and patent law, were being severely criticized, and proposals for changing the way this things were being conducted in American society were about to become a reality. We defend the position that the attitude of the pharmaceutical business representatives, were crucial for the establishment of the scientific rules that were considered consensual, and that these rules, for many reasons, started to be the paradigm of medical reasoning and individual decision in medical problems. Implementation, acceptance, and maintenance of this new clinical scientific method that was born after the legal demand for prove of efficacy of a new drug, particularly in medical community, occurred in a very particular way. We discuss the history of this process under two separate perspectives: the official history, as described by History Department of the Food and Drug Administration, and alternatively, through an analysis of the speeches of persons who actually participated directly in this discussion. Physicians, pharmacologists, lawyers, legislators, economists, pharmaceutical industry representatives, government members and politicians, all these groups, emitted their opinions and these were registered and published. This is the row material that was used to composite a new story of the whole process, and the result of this work is somehow different from the official history reported before. The scientific dimension of this story is mixed up with other important aspects like: legislative debates, private economical interests, the role of the State in regulating the economy, academic participation in decisions related to economic growth of a country, etcWe try to prove that the intersection of all these interests in a consensual framework built up a situation in which the previously referred technical-scientific dimension started to have a relatively bigger importance in relation to the other aspects as an instrument to legitimate what is truth (or what is false) in clinical medicine, to the whole body of the society. This fact brought two important practical consequences: a progressive reduction in other human aspects of clinical medicine apart from technology, and, the development of a system of barriers that jeopardize the possibility of a critical attitude towards the scientific method from those who practice medicine. Around the concept of humanism, studied particularly inside western philosophical tradition, we discuss how much this so called hypertrophy of the technical-scientific dimension and its practical consequences can be scrutinized and questioned in its epistemological foundations in order to rebuild a new medicine more human and critical.
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