Apresentação do dossiê temático

Apresentação       Heloisa Maria Moreira Lima Salles[1] Rosana Cipriano Jacinto da Silva[2] Valdiceia Tavares dos Santos[3] Jorge Amaro de Sousa Borges[4]               Em vista do objetivo primordial de promover o debate em torno de temas que desafiam a sociedade e de co...

Full description

Bibliographic Details
Main Authors: Rosana Cipriano Jacinto da Silva, Heloisa Maria Moreira Lima Salles, Valdiceia Tavares dos Santos, Jorge Amaro de Sousa Borges
Format: Article
Language:English
Published: Defensoria Pública do Distrito Federal 2020-09-01
Series:Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal
Subjects:
Online Access:http://revista.defensoria.df.gov.br/revista/index.php/revista/article/view/90
Description
Summary:Apresentação       Heloisa Maria Moreira Lima Salles[1] Rosana Cipriano Jacinto da Silva[2] Valdiceia Tavares dos Santos[3] Jorge Amaro de Sousa Borges[4]               Em vista do objetivo primordial de promover o debate em torno de temas que desafiam a sociedade e de contribuir para o entendimento de questões de interesse da população, a Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF), em parceria com o Centro de Apoio ao Surdo (CAS), da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF/GDF), e com o Laboratório de Estudos Formais da Gramática da Universidade de Brasília (LEFOG/UnB), tem a imensa satisfação de trazer a público as contribuições ao volume temático intitulado Direitos linguísticos de populações minoritárias e vulneráveis no âmbito das políticas públicas inclusivas sob a perspectiva jurídica e educacional.              Com esse recorte temático, os artigos que integram o volume propiciam o aprofundamento sobre importantes questões da atualidade, além de permitir o intercâmbio de ideias, por meio de um olhar crítico e abrangente. Em particular, considera-se que os direitos linguísticos instauram uma vertente de reflexão que desafia a atuação governamental e a capacidade de intervenção da sociedade civil organizada, tendo por referência o conhecimento agregado na investigação científica e no repertório de saberes tradicionais que o diálogo com a sociedade propicia.             De fato, a centralidade da língua na constituição do perfil cognitivo, social, afetivo e cultural dos indivíduos estabelece uma ampla gama de interfaces para o tratamento desse fenômeno único e multifacetado, com implicações para a formulação de políticas públicas e para a promoção de uma atitude transformadora diante das demandas da população. Nesse sentido, têm prioridade as populações social e economicamente vulneráveis, as populações tradicionais, os povos indígenas, as pessoas surdas falantes da Língua de Sinais Brasileira, além dos grupos formados por refugiados e imigrantes. Para esses grupos, os inúmeros conflitos que emergem no contato linguístico se traduzem no preconceito linguístico, fomentando os profundos distanciamentos em que se constitui historicamente a estrutura social de nosso país. Essa questão ocupa lugar central, no âmbito da Linguística, como se depreende da reflexão de pesquisadores desse fenômeno. “O preconceito linguístico atinge um dos mais nobres legados do homem, que é o domínio de uma língua. Exercer isso é retirar o direito de fala de milhares de pessoas que se exprimem em formas sem prestígio social. (...) O que afirmo e até enfatizo é que ninguém tem o direito de humilhar o outro pela forma de falar. Ninguém tem o direito de exercer assédio linguístico. Ninguém tem o direito de causar constrangimento ao seu semelhante pela forma de falar.” (Scherre, 2009) Entendida como fenômeno mental e biológico, a língua representa uma capacidade humana inata, referida como a Faculdade de Linguagem, pela qual o ser humano desenvolve o conhecimento do sistema linguístico de sua comunidade (Chomsky [1967]/1981). Como sistema simbólico, a língua constitui a subjetividade do falante, propiciando a negociação dos sentidos e definindo o lugar de fala dos interlocutores na interação social (Benveniste, 1976). Dessa forma, a língua é constitutiva da experiência social do falante, o qual, nos termos de Ponso (2017, p. 203), encarna culturalmente uma relação com esse sistema simbólico, que inclui “o conjunto de suas variações, os julgamentos que se atribuem a elas, sua memória, seus limites e possibilidades.”  No contexto dessas relações simbólicas, emerge a intolerância para com os usos linguísticos dos sujeitos sociais e étnicos marginalizados e/ou socialmente desfavorecidos, como contraponto ao processo que institui a variedade de prestígio. Sabe-se também que, nas sociedades complexas contemporâneas, a identificação de uma norma padrão é um processo de intervenção que se sustenta em processos circulares, na medida em que depende de reconhecimento oficial no âmbito do ordenamento jurídico, por um lado, e de instrumentos que o sustentem, como ortografias, gramáticas, dicionários, por outro, ambos dependentes do acesso aos meios materiais e intelectuais (cf. Houaiss 1989; Ponso, 2017). Romper essa circularidade é tarefa primordial, o que implica o empoderamento das comunidades linguísticas, pelo reconhecimento dos direitos linguísticos e sociais de seus membros. No território brasileiro, a situação de dominação legitimou-se historicamente pela ideologia do monolinguismo, que toma a língua como um atributo da identidade nacional. No início da colonização, essa prática incidiu de forma avassaladora sobre a população autóctone, detentora de cerca de 1.100 línguas, hoje reduzidas drasticamente a cerca de 270 línguas (cf. Rodrigues, 1986, 1993; BRASIL, 2010). É o que observa Braggio (2010, p. 134): A política de Portugal com relação às línguas e culturas indígenas era clara: os indígenas deviam ser incorporados à sociedade envolvente a despeito de suas línguas e culturas. O que se vê é um avanço da língua portuguesa em detrimento das línguas indígenas. (...) A língua era vista como parte da identidade de um povo – um Estado: uma língua. (...) Os indígenas habitantes das costas do Brasil foram assim atingidos frontalmente, pois tiveram cassado o direito linguístico fundamental de falar as próprias línguas.             Tal situação ganha novos contornos com a chegada ao Brasil dos africanos trazidos como escravos, uma situação abjeta que perdurou por três séculos (e ainda perdura), com implicações linguísticas semelhantes, no que se refere à imposição do português, e a consequente ressignificação dos valores culturais desses povos na língua do dominador. Conforme observa Mattos e Silva (2004, p. 60), “[s]erá difícil recuperar os processos linguageiros centrados no contato das línguas africanas com o português, porque diluído e entremeado no todo da história social do Brasil.” Nesse contato monumental, está assentada a matriz do português brasileiro, vernacular e tradicional, marcada pela diversidade e pelas consequências históricas do aludido processo colonial, em que se edificam nossos bens culturais e, também, a deplorável injustiça social que caracteriza nossa sociedade. Nesse sentido, é inevitável reconhecer que esse conflito original se mantém presente na ordem social vigente, uma vez que prevalece a fragilidade das ações do Estado na implementação de políticas linguísticas voltadas para a proteção e valorização desse patrimônio, que são as línguas presentes no território nacional – as cerca de 270 línguas indígenas, as cerca de 70 línguas de imigrantes, a Língua de Sinais Brasileira, a língua de sinais Ka’apor – , a despeito dos avanços da legislação e dos esforços da sociedade civil organizada. Cabe então à esfera institucional, enfrentar essa complexa questão da coexistência dessas línguas com o português – língua majoritária e oficial –, o que pressupõe ações objetivas de planejamento linguístico, tendo em vista o letramento e a promoção da cidadania. Como salienta Calvet ([1947] 2007), tais ações se organizam em função do reconhecimento dos direitos linguísticos dessas populações, estando sua execução sob a salvaguarda do Estado – não existe planejamento linguístico sem suporte jurídico (p. 75). Para tanto, faz-se necessário qualificar o estatuto das línguas presentes no território nacional, e das variedades dialetais do português, considerando-se as situações de uso e a defesa do patrimônio e dos bens culturais que veiculam, e seu corolário, a garantia dos direitos linguísticos e sociais daqueles que as falam. Neste ponto, retomamos as considerações iniciais, que apontam para a importância da interlocução entre os entes responsáveis pela formulação de políticas públicas inclusivas e os que garantem sua execução, sendo o campo educacional e jurídico o enfoque preferencial das contribuições a este dossiê. Atendendo à delimitação proposta na chamada ao dossiê temático, o volume acolheu contribuições com enfoques diversificados na investigação da questão linguística no contexto social. O artigo de Milena M. A. Alves e Torquato da S. Castro Júnior, intitulado “Os atendimentos aos assistidos da defensoria pública como inspiração a discussões linguísticas no direito: a problemática dos conceitos”, trata da atuação do jurista na interpretação do significado dos conceitos e sua relação com a realidade e a própria noção de verdade, tendo como motivação os atendimentos no âmbito da Defensoria Pública. O artigo de Júlia Izabelle da Silva, intitulado “Direitos linguísticos e políticas públicas no acesso da mulher indígena à justiça”, aborda as dificuldades enfrentadas pelas mulheres indígenas em acessar o sistema de justiça (e outros contextos institucionais) em suas línguas nativas, com o apoio de intérpretes. O artigo intitulado “Por onde eu começo? Intérpretes de Libras-Português na esfera jurídica”, de Silvana Aguiar dos Santos e Aline Vanessa Poltronieri-Guesser, discorre sobre a questão correlata das demandas dos profissionais intérpretes de Libras-Português, no âmbito do poder judiciário (e por consequência em outras esferas de atuação desses profissionais). O artigo de Mariana G. F. de Castro e Celeste Azulay Kelman, intitulado “Estratégias de ensino de leitura e escrita no contexto de políticas linguísticas para surdos”, aborda questões metodológicas que envolvem o letramento e a educação bilíngue de surdos, em que se ratifica o entendimento de que a Língua de Sinais Brasileira é a primeira língua do surdo, e o português (escrito), a segunda língua. O artigo de Francimária Bérgamo e Eloisa N. S. Pilati, intitulado “Variação linguística na escola: questões para a educação em comunidades rurais”, discute o preconceito linguístico enfrentado pelas comunidades tradicionais de origem africana no contexto educacional, considerando questões metodológicas na abordagem da norma padrão, tendo como referência o conhecimento linguístico desses falantes. Finalmente, o artigo de Nélson Dias e Karine Albuquerque Negreiros, intitulado “Dispositivo de segurança na legislação linguística dos surdos e seu reflexo na educação”, propõe uma análise qualitativa da Lei de Libras e do decreto que a regulamenta, pela identificação de dispositivos de segurança e assujeitamento, que evidenciam o poder exercido pela cultura oral, e o consequente distanciamento em relação ao que é almejado pela comunidade surda. O cenário delineado pelos artigos deste dossiê temático permite antecipar contribuições relevantes para o entendimento das complexas questões abordadas, com a desejável consequência de promover o debate fundamentado e qualificar eventuais intervenções, por meio de ações efetivas, no âmbito institucional, em favor dos direitos linguísticos e da cidadania. Agradecendo à Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, na pessoa de seu Editor-Chefe, Alberto Carvalho Amaral, pelo convite para organizar este Dossiê Temático, e manifestando nossa imensa gratidão às autoras e aos autores que integram o volume, desejamos à comunidade: - Boa leitura!   Referências BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral. 5ª edição. São Paulo, Pontes, ([1974]/ 2005) BRAGGIO, Sílvia L. B. Políticas linguísticas e direitos linguísticos dos povos indígenas brasileiros. Signótica, 14; 129-146, 2002. BRASIL, IBGE. Censo Demográfico. 2010. Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-3/o-brasil-indigena/lingua-falada. Acesso em 14 de setembro de 2020. CALVET, Louis-Jean. As políticas linguísticas. Tradução de I. Oliveira Duarte et al. São Paulo: Parábola Editorial; IPOL, ([1947] 2007). CHOMSKY, Noam. Aspects of the theory of syntax. Cambridge, Mass., The MIT Press, 1965. CHOMSKY, Noam. Lectures on government and binding. Foris, Dordrecht, 1981. HOUAISS, Antônio. O português brasileiro. Rio de Janeior, Unibrade/ Unesco, 1985. MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro. São Paulo, Parábola Editorial, 2004. RODRIGUES, Aryon D. Línguas brasileiras. Para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Loyola, 1986. RODRIGUES, Aryon D Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas. Delta, 9, p. 83-103, 1993. PONSO, Letícia Cao. Situação minoritária, população minorizada, língua menor: uma reflexão sobre a valoração do estatuto das línguas na situação de contato linguístico. Gragoatá, 22 (42), p. 184-207, 2017. SCHERRE, Maria Marta P. O preconceito linguístico deveria ser crime. Revista Galileu. São Paulo, Globo, p. 94-95, 2009.     [1] Professora Associada da Universidade de Brasília. hsalles@unb.br. [2] Professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e no âmbito da SEMESP/MEC. rosanacjs@gmail.com [3] Professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília. tavares.valdiceia40@gmail.com. [4] Professor da Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência e Pessoas com Altas Habilidades. jorgeamaroborges@gmail.com.  
ISSN:2674-5739
2674-5755